A explosão foi violentíssima, labaredas horrorosas pintavam
de um amarelo furioso e ladrão o horizonte que se esfumava nas chamas como uma
linha ténue entre o que sobrou e aquilo que foi fustigado como pó pelo fogo
hediondo que deflagrava. Andreia, acordou sobressaltada, pelo barulho das
ambulâncias, bombeiros, polícia, pessoas a berrar, alarmes a tocar, uma
sinfonia quase bélica para quem acorda às 7h00 da manhã, depois de 8 horas de
trabalho num supermercado na zona. Era sábado, mas pouco interessava o dia para
aquelas afogueadas pessoas que corriam tresloucadas, assustadas e temerárias
que um ente seu tivesse desaparecido naquela selva de fumo, calor e destruição
que coloria a loja afetada. Andreia, após tomar o seu banho diário, vestir as
suas leggins pretas, o seu top branco, casaco igualmente de um preto
assumidamente a prever um luto futuro na face desta bela jovem de olhos
azulados, cabelo de um castanho tão ténue que soava a mítico, um corpo
torneado, resultado de um exercício intenso e diário, desceu no elevador, do
seu apartamento T1 situado no 4º andar de um prédio (quase) devoluto que
conseguir comprar, a muito custo, com o dinheiro que arrecadava do parco
salário do supermercado, para presenciar o reboliço que sem respeito a retirou
do sono, com uma brutalidade romana quase. Andreia gelou ao ver o pânico
encrostado nos olhos e na face de quase todos os que estavam presentes. Mas pergunta vocês o que sucedeu afinal?
Sucedeu um curto-circuito no quadro elétrico da loja de conveniência do quarteirão,
a “Lojinha da Zulmira” foi totalmente arrasada por uma desgraça que vitimou a
Dona Zulmira e também três outros clientes que lá se encontravam. Andreia ainda
combalida da má notícia, lembrou-se que o seu namorado que dormira junto dela
naquela noite, tinha deixado um bilhete a dizer, “Amor, saí mais cedo porque
fui buscar leite, ovos, pão e água à Dona Zulmira, já volto”. Andreia bloqueou,
a perceção de que, Tiago (nome do jovem), poderia ter falecido na sequência do
desastre. Tentou, louca, saber se o seu amor tinha sido um dos mortos, falou
com bombeiros, médicos, mas os nervos entorpeciam as palavras e a comunicação
foi-se toldando, precipitando-a a correr para os hospitais mais próximos,
tentando ao mesmo tempo, encontrar uma frieza quase hercúlea para raciocinar e
tentar construir um discurso minimamente coerente para poder saber algo do seu
Tiago. O telemóvel permanecia incontactável, num silêncio sepulcral que
perpetuava em si as vagas esperanças da angustiada Andreia. Ao dobrar a esquina
para a avenida que a levava ao hospital central da cidade, o telemóvel de
Andreia toca, do hospital, do outro lado uma voz grave, cuidadosa em cada
palavra dita para dizer a horrenda novidade à amada de Tiago, conta de uma
forma quase embriagada pela tristeza que o consumia, que Tiago não conseguiu
resistir aos gravosos ferimentos infligidos pela queda de um armário em cima do
tórax, fraturando a caixa torácica, perfurando os pulmões, acabando por falecer
às 10 da manha. O médico disse a Andreia que Tiago lhe pediu, em jeito de
último pedido antes de desaparecer do mundo dos vivos, que liga-se a Andreia a
dar a notícia, era a única pessoa que amava de verdade. Andreia desligou a
chamada e caiu. Na esquina, sentou-se e um surto de choro invadiu a sua alma
como se fosse uma coceira no espírito que a incomoda-se de segundo a segundo e
lhe trouxesse à memória todo o carinho, amor, amizade, companheirismo, sorriso
de menino despreocupado com a vida que Tiago lhe oferecia em doses acima da
média normal. Tiago era um garoto de 23 anos, mais novo 4 anos que Andreia que
tinha 27. Tiago tinha acabado o curso em arquitetura, dono de um talento
invulgar para o desenho, cedo começou a trabalhar o seu dom, desenhando
milhares de obras, expostas pela cidade, em exposições que o próprio
organizava. Conheceu Andreia numa dessas galearias que expunham os trabalhos do
jovem pródigo, amor à primeira vista, numa empatia quase digna de ser descrita
por um qualquer romancista apaixonado pela sua musa. A ligação fortificou-se e
durou até à aquele dia, nuns 7 anos de namoro que pareciam eternos, até a foice
da morte ter sido cruel o suficiente para estender a sua lâmina à vida deste
pobre rapaz. Andreia enlutou, durante meses e meses. Pálida, fraca, de
expressão triste e agoniada quando a saudade batia como um soco de um pugilista
no peito desta humilde mulher, desnutrida porque a comida trazia-lhe um sabor
amargo que lhe retirava o brilho. Um cadáver ambulante tomara conta do outrora
esbelto, (como já foi supracitado) torneado, firme e de uma beleza que fazia
girar muitas cabeças masculinas ao passar nas ruas. As suas colegas de trabalho
tentavam aconselhá-la a devagar voltar à entusiasmante Andreia que meses antes
criava frisson quando aparecia com a sua diminuta minissaia a trazer à baila as
suas galopantes e excitantes pernas que traçavam uma rota muito definido, o
caminho da felicidade. A recuperação foi acontecendo devagar, um processo
gradual e que contou com a ajuda da sua amiga Jéssica que durante as horas de
vil sofrimento a que foi votada, a apoiou, com uma força monstruosa e duma
alegria de viver que voltava a contagiar Andreia. Andreia no meio de tanto
destroço, encontrou uma luz, brilhante como um cristal puro a entoar o seu
fascínio no alto duma montanha esbranquiçada pela neve. A escrita tinha tomado
a sua alma como um vício que se propaga silencioso pelo organismo, como o gás
que tinha vitimado o Tiago numa manha ensombrada pelo signo do demónio. Andreia
escrevia veloz e decididamente como uma gazela corre pelas pradarias de Africa.
Desmitificando dogmas, pondo em causa tabu, uma aguçada fonte crítica e
criativa começava a desabrochar no âmago desta linda moça, como uma rosa nos
primeiros raios de sol primaveril, primeiro tímida e amedrontada, mas depois
com uma pujança e força de vontade totalmente extasiante. Quando já conseguia
sorrir como dantes, Andreia já tinha material literário para lançar um livro.
Utilizou os contactos que tinha estabelecido através da profissão artística do
ex-namorado aquando da sua fase de maior fulgor criativo e consequentes
apresentações das obras-primas. Acordou um contrato com uma editora das
redondezas, o livro chamar-se-ia “ Rasgos Da Minha Consciência” e teria uma
tiragem de 2000 livros. Foi organizado o lançamento do livro num centro
cultural perto da residência de Andreia, centenas de convites entregues, toda a
nata ligada à cultura convidada para tal evento. Chegado o dia, deu-se a
apresentação do livro, uma breve declaração de Andreia, do editor e um fado
interpretada pela Jéssica, ombro amigo de Andreia nas horas más. 2000 Livros
vendidos na noite de lançamento, sucesso profundo, sorriso rasgado, de orelha a
orelha na face da autora, parabéns a rodos param um livro que prometia uma
leitura deliciosa e apaixonante. O reconhecimento veio com a rapidez de um
trovão, mas com o sabor de um chocolate Suíço, a alma de Andreia estava
renovada. Mas numa noite, o medo da solidão tomou conta de Andreia. Trémula,
hesitante, assustada. Embrulhada nos lençóis da sua cama, Andreia pensava no
trilho que tinha de percorrer, agora que toda a gente a conhecia, falar a toda
a gente, sorrir, tirar uma foto, tudo! Tudo sem Tiago! Quase já soluçava de
tanto chorar, um pombo batia com o bico na janela do apartamento de Andreia, de
forma melódica, de tal forma compassada que entusiasmou a bela rapariga a abrir
a janela para brincar com tão inusitado animal. Ao abrir a janela, viu que o
pombo deixou cair do bico que criava o toque-toque um papel pequeno, quase como
um papiro egípcio, que continha uma mensagem escrita a tinta e numa letra duma
perfeição quase insultuosa para o comum mortal. Andreia abriu a mensagem e ao
fazê-lo, o pombo abriu as asas brancas como cal e voou, voou até ao infinito,
até se resumir a poeira brilhante como diamantes, ao estilo da mais fantástica
fénix! Ao ler a mensagem, Andreia estremeceu, esqueleto remexeu como um
terramoto dentro dos próprios ossos.
Dizia: “ Amor, nunca te abandonei, deixei-te fisicamente, mas continuo a
velar pelo teu futuro, sentado à tua cabeceira quando choraste horas a fio,
perdida no mar de piranhas e num jardim de cobras que foi a tua mente durante
dias e dias. Sei que lançaste um livro, fico feliz por teres descoberto essa
tua forma tão mágica de expressar a tua doce forma de ser, olhar, falar, tratar
e tocar no próximo. Quando acabares de ler esta mensagem, uma estrela brilhará
no céu. A nossa estrela, dona de uma luz tão única que a criei só para ti, como
criei dezenas de desenhos, lembraste? Amo-te meu amor!” Ao acabar de ler a
mensagem vinda do além, Andreia, embevecida pela surpresa do seu anjo da
guarda, olhou o céu profundo uma ultima vez naquela densa noite. E no meio do
breu, uma estrela cintilava de forma inexplicavelmente fogosa, Andreia beijou a
mensagem, como se beija-se os lábios do seu grande amor, fechou a janela com a
suavidade de quem acabou de ser amada duma forma pura e humilde, deitou-se na
cama, confortável, mas ao fechar os olhos, um rasgo de luz tomou a sua janela,
com uma frase lá redigida.
A frase era: “Nunca peças o mundo quando só precisas de mim.
Dorme bem meu amor”
E Andreia dormiu, feliz, calma, amada e acompanhada pelo seu
menino.
Rui Castro.